terça-feira, 12 de maio de 2015

A TUTELA ESQUECEU A ALERGOLOGIA PEDIÁTRICA

Em vésperas da realização do 4º Congresso da Sociedade Portuguesa de Alergologia Pediátrica (SPAP) que este ano decorreu entre os dias 8 e 9 de Maio, no Palace Hotel Monte Real, fomos conhecer melhor a instituição, criada há cerca de quatro anos no seio da Sociedade Portuguesa de Pediatria, num momento em se estimava que entre 12 a 13% das crianças portuguesas tinham asma e que mais de 30% apresentavam sintomas de rinite. Uma realidade que entretanto tem vindo a alterar-se, com a estabilização do número de casos. Hoje, a grande preocupação dos pediatras são as alergias alimentares, que têm vindo a aumentar significativamente, quer em número quer em severidade, apontou ao nosso jornal Libério Bonifácio Ribeiro, presidente da SPAP, que lamenta a falta de respostas da tutela para os muitos problemas que afectam a alergologia pediátrica.

Apesar de criada há apenas quatro anos, a Sociedade Portuguesa de Alergologia Pediátrica (SPAP) resultou da individualização, no seio da Sociedade Portuguesa de Pediatria (SPP), da Secção de Imunoalergologia Pediátrica, criada em Março de 1985. “Costumo dizer que a SPAP é um jovem adulto, com trinta anos de idade”, diz Libério Bonifácio Ribeiro, presidente da instituição.

A autonomização, ainda que limitada, foi vantajosa: “ganhámos visibilidade e um maior reconhecimento externo, pese embora termos sido sempre autónomos em termos funcionais e financeiros face à SPP, mesmo quando éramos apenas uma secção”.

Mas a verdade é que o novo estatuto veio facilitar o estabelecimento de intercâmbios com outras sociedades, quer a nível nacional, quer internacional. “Os resultados não tardaram. Por exemplo, ainda que já tivéssemos uma relação de grande proximidade com a Sociedad Española de Inmunología Clínica, Alergología y Asma Pediátrica (SEICAP), a autonomização veio propiciar a organização de sessões conjuntas no âmbito dos congressos das duas sociedades. Também com a SEICAP estamos neste momento a preparar um documento de consenso sobre a alergia às proteínas do leite de vaca (CIbAL – Consenso Ibérico Alergia ao Leite), cujos resultados preliminares serão apresentados em Maio no 4º Congresso da SPAP”. Uma iniciativa alicerçada no método Delphi e que tem como objectivo uniformizar a nível da Península Ibérica a abordagem preventiva, diagnóstica, terapêutica e evolutiva destas alergias, explicou ao nosso jornal o especialista.

Outra das vantagens que resultaram da “promoção” da antiga secção a sociedade foi a da maior relevância e facilidade no estabelecimento de parcerias directas com instituições oficiais, que no passado eram sempre mediadas pela SPP, aponta o médico.

O “nascimento da SPAP surgiu num momento em se se estimava que entre 12 a 13% das crianças portuguesas tinham asma e mais de 30% apresentavam sintomas de rinite. Ora, sendo certo que no que se refere à asma os indicadores reflectem uma estabilização do número de casos, já no que toca às alergias alimentares a situação tem-se vindo a agravar muito significativamente, quer no que respeita ao número de casos, quer à sua severidade”, diz. Um fenómeno mundial, particularmente grave nos países desenvolvidos, mercê de inúmeros factores – socioeconómicos, culturais, entre outros, que tem merecido especial atenção por parte da comunidade médica.

“Se é verdade que hoje em Portugal a mortalidade em idade pediátrica associada à asma é nula, o mesmo já não se pode afirmar relativamente à relacionada com a alergia alimentar”. Um novo cenário que Libério Ribeiro associa a diversos factores que têm potenciado uma quebra no equilíbrio que se verificava entre os indivíduos com propensão genética para o desenvolvimento de doença alérgica – cerca de 80% dos doentes têm antecedentes familiares de alergia – que acabam por desenvolver doença e aqueles que não manifestavam quaisquer sintomas da doença ao longo da vida. “O que mudou? O meio em que nos desenvolvemos, que nos afecta logo nos primeiros meses de vida; em que a amamentação é muitas vezes substituída por uma alimentação artificial que nem sempre é decidida tendo em conta o risco específico da criança – a primeira proteína estranha que uma criança com risco alérgico toma provém, normalmente, do leite de vaca”. Ora, explica, “o leite materno é essencial ao desenvolvimento de tolerância a outros alimentos, pelo que crianças que não estão a ser amamentadas correm um risco maior de desenvolverem alergia alimentar do que aquelas que estão a ser amamentadas concomitantemente”.

O universo de riscos que o desenvolvimento da ciência trouxe faz mesmo com que a propensão para o desenvolvimento de doença alérgica possa ser determinada pelo tipo de parto, explica o médico. De uma forma muito simplista, “hoje sabemos que ao nascer todos temos um perfil alérgico (TH2) – todos nascemos potencialmente alérgicos – defleção imunológica necessária para a viabilização do próprio feto, que de outro modo seria rejeitado como corpo estranho. Esta propensão alérgica começa a alterar-se logo no canal de parto vaginal onde o bebé contacta com a flora materna que induz uma alteração de perfil TH2 para TH1. Ora, o problema é que hoje em dia os partos são cada vez mais assépticos. Uma situação agravada pelo excessivo recurso a cesarianas (em que a assepsia é total). Cerca de 36% dos partos realizados em Portugal são por cesariana, um dos valores mais elevados a nível mundial”.

Segundo o presidente da SPAP, “está hoje demonstrado que uma criança nascida com recurso a cesariana só consegue desenvolver uma microflora intestinal idêntica à de uma criança nascida por parto natural aos seis meses de vida, ou seja, há uma janela de seis meses potencialmente perigosa para aqueles que têm um risco genético maior”, explica.

A todos estes riscos acrescidos iniciais somam-se outros, resultado de práticas adoptadas no passado e que hoje se apontam como erradas. “Por exemplo, em crianças com risco alérgico elevado, protelávamos o mais possível – até aos 12-15 meses – a introdução na dieta dos alimentos mais potencialmente alergizantes, como o ovo ou o peixe. Ora, hoje em dia pensa-se que essa introdução deve ser feita mais precocemente – particularmente nas crianças que estão a ser amamentadas – de modo a alcançar-se também o quanto antes a tolerância a esses alimentos”.

A tudo isto… Somam-se os problemas da modernidade. “Quando estamos a beber leite estamos também a ingerir antibióticos e hormonas introduzidas nas rações animais… Pesticidas agrícolas… Enfim, uma ecotoxicidade a que a maioria de nós está exposta no dia-a-dia, queira ou não e que por efeito cumulativo induz um maior risco de desenvolvimento de alergias e outras patologias” aponta.

De entre as formas mais comuns da doença, a rinite alérgica é a que assume proporções mais preocupantes, com uma prevalência no adulto jovem entre os 35 e os 40% mas que em alguns casos é mesmo superior: “Num estudo que realizei em alunos de um agrupamento de escolas da Lourinhã, a prevalência de rinite alérgica atingiu os 45%”, recorda o médico, para logo acrescentar: “o inquérito que então fiz revelou que mais de metade das casas eram alcatifadas; que mais de 50% dos pais eram fumadores e que fumavam dentro de casa… que 80% tinham animais domésticos. Todos factores agravantes do risco”.

Alergologia pediátrica: uma área esquecida pela tutela

Aos muitos problemas que a Alergologia Pediátrica portuguesa hoje enfrenta, soma-se um outro, igualmente limitador da definição de estratégias adequadas a uma intervenção clínica informada: a da aparente falta de interesse da tutela.

“Houve em tempos uma chamada Comissão Nacional da Asma (CNA), marcada por um facto curioso: coordenada pela Direcção-Geral da Saúde, a CNA contava com representantes da Coordenação Nacional da Global Initiative for Asthma (GINA), da Sociedade Portuguesa de Alergologia e Imunologia Clínica, da Sociedade Portuguesa de Pneumologia e da Associação Portuguesa de Asmáticos. A Pediatria não estava representada, não obstante a asma ser muito mais prevalente na criança do que no adulto” recorda Libério Ribeiro. Como não poderia deixar de acontecer, a direcção da Sociedade Portuguesa de Pediatria (SPP), à época, lamentou a lacuna, recordando que integrava a sociedade uma Secção de Alergologia Pediátrica, da qual faziam parte “os elementos mais activos e representativos desta área de Pediatria, que espalhados pelo País, nas suas Unidades, desenvolvem uma actividade profícua, tanto na vertente assistencial como na pedagógica e científica, reconhecida a nível nacional e internacional”.

Um esquecimento tanto mais lamentável e incompreensível sublinhava então a SPP, dado todos os estudos epidemiológicos, demonstrarem que “a prevalência da asma é elevada nos diversos escalões etários da criança e quando cerca de 30% das admissões nos Serviços de Urgência são crianças com agudização da sua asma”.

“Mais tarde acabaríamos por ser integrados… Ainda que por pouco tempo. Isto porque como muitas vezes sucede em Portugal o programa foi extinto por falta de verbas, através de um Despacho assinado pela então ministra das Finanças. Mais recentemente com a criação do Programa Nacional para as Doenças Respiratórias “cheguei a participar numa reunião e foi tudo. Nunca mais fomos convocados para o que quer que fosse”, relatou ao nosso jornal Libério Ribeiro, que confessa que até hoje ainda não deu conta de que alguma coisa estivesse a ser implementada no terreno, ao nível da criança alérgica, ao abrigo do programa da DGS.

Comparticipação das vacinas… Uma batalha que continua

Uma das reivindicações pelas quais a Sociedade Portuguesa de Alergologia Pediátrica e o seu presidente mais se têm batido é a da que as vacinas antialérgicas voltem a ser comparticipadas pelo Estado, sustentando a pretensão no facto de estar hoje perfeitamente demonstrado que a imunoterapia específica é a única forma de alterar a história natural da doença alérgica. “Têm não só um efeito curativo relativamente às alergias para as quais estão indicadas, como também um efeito preventivo do desenvolvimento de futuras alergias”, defende o médico.

Uma questão que assume particular acuidade em tempos de crise. “No nosso primeiro congresso, que coincidiu com o início da actual crise económica e financeira que o país atravessa, um dos painéis de debate foi dedicado ao tema Asma e Pobreza, que naturalmente condiciona a doença alérgica. As condições habitacionais de milhares de famílias degradaram-se assim como os padrões de higiene. Comem-se mais hidratos de carbono e menos proteínas, o que tem impacto ao nível do sistema imunitário. Outro aspecto que deveria ser avaliado é o da adesão à terapêutica. Os medicamentos são caros e é provável que muitos doentes, por exemplo asmáticos, tomem apenas a medicação sintomática e não a de fundo que é a que verdadeiramente trata a doença”, por falta de recursos.

FONTE: JORNAL MÉDICO PT