Alergia à Proteína do Leite de Vaca
Allergy to cow´s milk protein
FONTE: GRUPO EDITORIAL MOREIRA JR.
LINK:
http://www.moreirajr.com.br/revistas.asp?fase=r003&id_materia=5465
Mauro Batista de Morais. Professor associado livre-docente da Disciplina de Gastroenterologia e chefe do Departamento de Pediatria da Universidade Federal de São Paulo.
Patrícia da Graça Leite Speridião. Professora adjunta doutora do Curso de Nutrição da Universidade Federal de São Paulo.
Marcela Duarte de Sillos. Médica do Pronto-Socorro de Pediatria do Hospital São Paulo e mestranda do Programa de Pós-graduação em Pediatria e Ciências Aplicadas à Pediatria da Universidade Federal de São Paulo.
E-mail Contato: mbmorais@osite.com.brPediatria Moderna Ago 13 v 49 N 8 págs.: 301-308
Unitermos: alergia, proteína, leite de vaca, lactente.Unterms: allergy, protein, cow's milk, newborn.
Resumo
Os autores abordam aspectos atuais da Alergia à Proteína do Leite de Vaca, destacando sua importância e frequência na clínica pediátrica. Procedem a uma revisão dos aspectos clínicos da patologia, em particular a cólica do lactente, refluxo gastroesofágico, proctocolite, constipação crônica, enteropatia e esofagite eosinofílica. Descrevem a rotina diagnóstica e apresentam paradigma para avaliação do paciente com alergia digestiva ao leite de vaca e frisam a importância de uma dieta de exclusão adequada para controle satisfatório do problema.
Introdução
As proteínas do leite de vaca são a principal causa de alergia alimentar no lactente(1-3). Na Tabela 1 são apresentadas as estimativas de alergia a diferentes tipos de alimentos, de acordo com avaliações realizadas nos Estados Unidos da América do Norte(3). No Brasil praticamente não existem informações precisas sobre a prevalência populacional de Alergia à Proteína do Leite de Vaca. Estudo epidemiológico(4) realizado em consultórios de Gastroenterologia Pediátrica de várias regiões do Brasil revelou que das 9.478 consultas, 7,3% tiveram como motivo suspeita de alergia alimentar, sendo os seguintes os alimentos suspeitos: 77% leite de vaca, 8,7% soja, 2,7% ovo e 11,6% outros alimentos. A análise de casos novos e em acompanhamento permitiu que se estimasse a incidência em 2,2% e a prevalência de 5,4% de pacientes com diagnóstico confirmado ou suspeita de Alergia à Proteína do Leite de Vaca(4).
A maior parte dos casos de Alergia à Proteína do Leite de Vaca ocorre na faixa etária de lactente. Este fato ilustra a elevada relevância da doença, por ocorrer em uma fase da vida em que se observa rápida velocidade de crescimento e desenvolvimento. Assim a própria doença, como também uma dieta substitutiva inapropriada(5) podem comprometer o pleno potencial de crescimento e desenvolvimento do lactente com Alergia à Proteína do Leite de Vaca.
No que se refere à fisiopatologia do processo se considera que indivíduos com predisposição genética podem não desenvolver tolerância às proteínas da dieta, o que propicia o desenvolvimento de uma reação imunológica, responsável pelas manifestações clínicas da doença(6-8). Tradicionalmente estas reações adversas aos alimentos são distribuídas em duas categorias, mediadas por células e pela IgE. As reações mediadas pela IgE ocasionam reações imediatas (minutos ou no máximo horas) após a ingestão do alimento que contenha a proteína alergênica. Por sua vez, as reações mediadas por células demandam um período maior para se estabelecer. São as reações mediadas por células as predominantes nos lactentes. Vale destacar que a maioria dos lactentes com Alergia à Proteína do Leite de Vaca mediada por células em geral desenvolvem tolerância oral espontânea ao completar um ou dois anos de idade(6-8). Assim, não cabem propostas para estes casos de métodos que visem acelerar o desenvolvimento da tolerância oral, ao contrário das medidas quesão tentadas em pacientes com maior idade, com reações alérgicas graves, do tipo anafilaxia (mediadas pela IgE)(9). Para estes casos existem, em poucos núcleos de pesquisa do mundo, projetos preliminares que visam induzir tolerância para proteger estes pacientes de reações graves, inclusive em eventos com exposição involuntária ao alérgeno.
Segundo Dupont (2011).
Apresentação clínica
As principais manifestações clínicas digestivas da Alergia à Proteína do Leite de Vaca são regurgitação e vômitos, cólica, diarreia com ou sem sangue, presença de sangue em fezes não diarreicas e constipação intestinal(1,2,4,6-8,10). A doença é mais comum nos primeiros meses de vida; no entanto, pode aparecer mais tardiamente. Estes grupos de manifestações compõem um conjunto de síndromes clínicas que podem ser decorrentes de Alergia à Proteína do Leite de Vaca ou, também, de outras doenças próprias de cada faixa de idade. Na Tabela 2 são apresentadas as principais manifestações clínicas, de acordo com a faixa etária(10).
A cólica do lactente pode ser definida pela ocorrência de crises de irritabilidade, choro e agitação, sem explicação plausível, por mais de três horas diárias, em mais de três dias da semana por mais de três semanas. Existe possibilidade de a cólica do lactente ser secundária à APLV, mesmo em lactentes em aleitamento natural exclusivo(7). Considera-se que esta manifestação é não IgE mediada e ainda não se sabe a prevalência de Alergia à Proteína do Leite de Vaca entre os pacientes com cólica do lactente. Nos casos de lactentes que recebem aleitamento natural exclusivo, a proteína do leite de vaca deve ser suspensa da dieta da mãe por duas semanas(8,11,12). Se houver melhora é interessante realizar teste de desencadeamento, oferecendo leite de vaca e/ou derivados à mãe e avaliar a recorrência das cólicas no lactente(8).
A associação entre cólica do lactente e Alergia à Proteína do Leite de Vaca foi identificada em ensaios clínicos nos quais se observou melhora da cólica com o emprego de fórmulas com proteínas extensivamente hidrolisadas ou de aminoácidos(7,11,12). O mesmo não foi observado quando se utilizou fórmula sem lactose ou de soja(7,11,12). Deve ser ressaltado que a cólica do lactente desaparece por volta dos 3 a 4 meses. Assim, é imprescindível a realização de teste de desencadeamento para confirmar ou descartar o diagnóstico de cólica secundária à Alergia à Proteína do Leite de Vaca e evitar a utilização de dieta de exclusão desnecessária, por tempo prolongado(12). Vale destacar que em consultórios brasileiros de Gastroenterologia Pediátrica a cólica foi uma manifestação que esteve presente em 34% dos lactentes com suspeita de Alergia à Proteína do Leite de Vaca(4).
Regurgitações e vômitos podem ser ocasionados por doença do refluxo gastroesofágico secundária à Alergia à Proteína do Leite de Vaca. Na última diretriz conjunta das Sociedades Europeia e Norte-americana de Gastroenterologia Pediátrica a possibilidade da Alergia à Proteína do Leite de Vaca ser causa da doença de refluxo gastroesofágico recebeu grande destaque(13). Recomenda-se que entre os procedimentos necessários para o diagnóstico diferencial de lactentes com regurgitações e vômitos associados ou não com déficit de ganho de peso e irritabilidade deve ser tentada dieta de exclusão do leite de vaca e derivados. Nos lactentes que não recebem aleitamento natural, a fórmula dever ser substituída por fórmula com proteínas extensamente hidrolisadas ou de aminoácidos(13). Considerando que este problema em geral ocorre no primeiro semestre de vida, não deve ser recomendada fórmula de soja. Não existe informação precisa sobre a prevalência de Alergia à Proteína do Leite de Vaca entre os lactentes com quadro compatível com doença do refluxo gastroesofágico(13). Por outro lado, 53% dos lactentes atendidos por suspeita de Alergia à Proteína do Leite de Vaca por gastroenterologistas pediátricos no Brasil apresentam regurgitações e vômitos(4).
A proctocolite ou colite eosinofílica ou alérgica tem como manifestação clínica fundamental a presença de sangue em fezes normais ou diarreicas. De acordo com revisão da literatura, Lozinski e Morais(14) identificaram a publicação de 245 casos desde 1966. Observou-se que 61,5% eram do sexo masculino e o aparecimento de sangue nas fezes ocorreu, em geral, no primeiro semestre de vida. Com relação às fezes, em 73,5% não eram diarreicas. No hemograma se constatou eosinofilia em 48,0% dos casos. Teste de desencadeamento com proteínas do leite de vaca, com a finalidade de confirmação diagnóstica (nos primeiros meses após a recuperação clínica obtida pela interrupção do leite de vaca), foi positivo em 92,0% dos 25 casos nos quais foi realizado(14). Assim, ao contrário do observado com a cólica do lactente e o refluxo gastroesofágico, em geral os lactentes com proctocolite e colite eosinofílica apresentam Alergia à Proteína do Leite de Vaca. Entretanto, deve-se ter em mente outros diagnósticos diferenciais quando se observam manifestações atípicas (por exemplo, febre, vômitos e diarreia com início abrupto, compatíveis com diarreia aguda por Shigella, fissura anal e outras condições clínicas). Outro ponto importante, identificado na mencionada revisão da literatura, é o fato de que 43,3% dos 245 casos publicados se encontravam em aleitamento natural exclusivo(14). Nesta situação é necessário excluir as proteínas do leite de vaca e derivados da dieta da mãe, observando-se o desaparecimento do sangramento intestinal. É interessante mencionar que após o controle do processo é comum observar-se pequenos episódios de sangramento, caso a mãe consuma involuntariamente pequenas quantidades de proteína do leite de vaca.
Constipação crônica secundária a Alergia à Proteína do Leite de Vaca é outra manifestação que pode ocorrer, não somente no primeiro ano de vida como também no pré-escolar e no escolar. Estudo realizado com 65 crianças italianas (idade entre 11 e 72 meses) com constipação crônica refratária ao tratamento habitual mostrou que 68% delas apresentaram recuperação clínica durante dieta de exclusão das proteínas do leite de vaca(15). Recorrência da constipação foi constatada quando o leite de vaca foi reintroduzido na dieta. Edema, hiperemia e fissura anal foram mais frequentes nas crianças que responderam clinicamente com a dieta de exclusão, assim como a infiltração por eosinófilos na mucosa retal(15). Mencionou-se dificuldade para o tratamento destas fissuras anais, sugerindo que este quadro de proctocolite poderia ser responsável por episódios de evacuação dolorosa, o que poderia agravar e perpetuar o quadro de constipação, intestinal. Os autores encontraram, nos pacientes com constipação, maior frequência de sensibilização e antecedentes pessoais e familiares de alergia secundária a Alergia à Proteína do Leite de Vaca(15). No entanto, grande parte dos pacientes com constipação por Alergia à Proteína do Leite de Vaca não apresentava sensibilização, o que também foi observado em estudo realizado em nosso serviço(16). Assim, considera-se que a reação imunológica da constipação por Alergia à Proteína do Leite de Vaca é do tipo não IgE mediada. Mais recentemente se demonstrou interação neuroimune, com base no estudo comparativo entre a intensidade de anormalidades por imuno-histoquímica e parâmetros da manometria anorretal(17). Outro aspecto importante, evidenciado em nosso serviço, é o comprometimento pôndero-estatural das crianças com constipação secundária ao leite de vaca, em comparação a aquelas apresentando constipação crônica funcional grave(18).
A enteropatia e a enterocolite induzida pela proteína do leite de vaca têm a diarreia crônica e a desnutrição e/ou déficit do crescimento como manifestações clínicas mais importantes. Ao que parece, esta forma de apresentação não é tão comum como se observava na década de 1970, quando foi descrita(19). Com frequência o processo era desecadeado por uma infecção por E. coli enteropatogênica(19). A redução na incidência foi observada a partir do final da década de 1990, quando começaram a surgir casos de alergia alimentar múltipla com lesões mínimas do intestino delgado(19,20). Essa síndrome pode ocorrer na ausência de infecção intestinal desencadeante. A enteropatia tende a ser menos grave que a enterocolopatia. No momento do teste de desencadeamento existe maior probabilidade de ocorrer reação positiva de maior gravidade(21). A síndrome de enterocolite induzida pela proteína da dieta apresenta elevada gravidade e recentemente foi considerada como reação alimentar sistêmica(8,21). A recuperação clínica e nutricional, com dieta de exclusão e fórmula substitutiva adequada, pode requerer um período mais prolongado(8).
A esofagite eosinofílica pode ocorre no lactente; entretanto, é mais prevalente no escolar e no adolescente(22,23). Nãose conhecem plenamente os fatores etiológicos envolvidos. As manifestações no lactente podem ser vômitos, regurgitações, dificuldade à alimentação e diminuição no crescimento. Nas crianças em idade escolar é comum a queixa de dor na região esternal, disfagia e impactação de alimento no esôfago. O diagnóstico exige a realização de endoscopia e biópsias, nas quais se observa infiltrado eosinofílico. O diagnóstico final depende da análise conjunta dos dados clínicos, endoscópicos e histológicos. O papel da Alergia à Proteína do Leite de Vaca e a outros alimentos não está plenamente demonstrado; entretanto, dieta de exclusão vem sendo recomendada como parte do tratamento(22,23).
Diagnóstico
A diretriz(8) do Comitê de Gastroenterologia da Sociedade Europeia de Gastroenterologia, Hepatologia e Nutrição em Pediatria ("ESPGHAN"), publicada em 2012, discute a relevância dos seguintes procedimentos no diagnóstico de Alergia à Proteína do Leite de Vaca em Pediatria:
1. IgE sérica específica e teste cutâneo de leitura imediata ("prick tet");
2. Teste de contato ("patch test"), IgE total e teste intradérmico;
3. Anticorpos séricos específicos da classe IgG e testes in vitro;
4. Endoscopia e histologia;
5. Dieta diagnóstica de eliminação das proteínas do leite de vaca;
6. Teste de desencadeamento ou desafio.
Os vários métodos são discutidos de maneira sintética e objetiva. Com relação à IgE sérica específica ("RAST", "Imunocap") e ao teste cutâneo de leitura imediata ("prick test") se afirma que a realização simultânea dos dois testes na avaliação diagnóstica é desnecessária(8). A presença de sensibilização, indicada por qualquer um destes testes, deve ser interpretada em conjunto com outros dados clínicos e evolutivos. Ou seja, sensibilização não é diagnóstico de alergia. Destacam ainda que, com frequência, nas reações não mediadas pela IgE se caracteriza sensibilização, ou seja, ambos os exames (determinação de IgE específica e teste cutâneo de leitura imediata) são negativos(8).
Com relação a teste de contato ("patch test"), IgE total, teste intradérmico, anticorpos séricos específicos da classe IgG e testes in vitro se ressalta que não existem demonstrações suficientes que permitam o uso de qualquer um deles na prática clínica(8).
Endoscopia e histologia devem ser indicadas em pacientes com sintomas gastrointestinais persistentes e/ou déficit pôndero-estatural. Destaca-se, ainda, que as infiltrações eosinofílicas e a atrofia vilositária devem ser correlacionadas com o quadro clínico e o resultado do teste de desencadeamento, levando em consideração que podem ser causadas por outras doenças, além da Alergia à Proteína do Leite de Vaca(8).
Por sua vez, grande destaque é atribuído à resposta clínica à dieta de exclusão. Este é um ponto com o qual concordamos plenamente e que muitas vezes é deixado em segundo plano, tanto pelos familiares como por alguns profissionais que valorizam de forma exagerada os exames subsidiários. Assim, a dieta de eliminação deve proporcionar melhora clínica quando se trata de Alergia à Proteína do Leite de Vaca e a dieta é administrada de forma apropriada. A diretriz(8) destaca que "a duração da dieta de eliminação depende das manifestações clínicas, deve ser a mais breve possível, no entanto, suficientemente longa para julgar a evolução dos sintomas". Assim, a duração varia de 3 a 5 dias para reações imediatas (por exemplo, angioedema, vômitos e exacerbação imediata de eczema); de 1 a 3 semanas para crianças com reações tardias (por exemplo, sangramento fecal e piora de eczema). Para pacientes com diarreia crônica e déficit de crescimento pode ser necessário realizar a eliminação por 2 a 4 semanas, para observar de forma clara o efeito positivo da dieta de eliminação(8). Destaca, ainda, que quando não houver resposta favorável é pouco provável o diagnóstico de Alergia à Proteína do Leite de Vaca, devendo-se considerar outros diagnósticos diferenciais. Deve ser destacado que estes procedimentos são direcionados basicamente aos lactentes.
No caso de lactentes em aleitamento natural exclusivo apresentarem manifestações clínicas compatíveis com Alergia à Proteína do Leite de Vaca se deve recomendar que as mães excluam as proteínas do leite de vaca de sua dieta (leite de vaca, seus derivados e alimentos que contenham leite na sua composição). A diretriz recomenda que quando as manifestações clínicas regridem, a mãe deve voltar a consumir proteínas do leite de vaca. Caso o diagnóstico se confirme (caracterizado pelo reaparecimento das manifestações clínicas), a mãe deve voltar para a dieta de exclusão, sendo necessário que receba suplementação de cálcio e aconselhamento nutricional(8).
De acordo com a diretriz(8) da ESPGHAN, o teste de desencadeamento deve ser realizado "após a verificação de melhora significante na vigência da dieta de exclusão, para confirmar o diagnóstico de Alergia à Proteína do Leite de Vaca". "O teste de desencadeamento deve ser realizado de forma padronizada, sob supervisão médica". Independentemente do tipo de reação esperada, o teste deve ser realizado sob supervisão médica em ambiente em que o tratamento de anafilaxia possa ser realizado a qualquer momento.
Notas: 1. Manifestação clínica apresentada por ocasião do teste de desencadeamento positivo foi diferente da manifestação clínica inicial em 24,9% dos pacientes com teste positivo. Teste de desencadeamento positivo foi mais frequente em pacientes que recebiam fórmula com proteína extensamente hidrolisada ou de aminoácidos.
2. Mesma manifestação que levou ao diagnóstico como critério para considerar o teste de desencadeamento positivo.
3. Todos os 46 pacientes apresentavam sensibilização, de acordo com o teste cutâneo de leitura imediata. O coeficiente Kappa mostrou concordância (0,73) entre as manifestações ocorridas no desencadeamento em relação às manifestações clínicas iniciais. Anti-histamínicos orais controlaram as manifestações clínicas decorrentes do teste de desencadeamento.
4. Foram estudados também 19 pacientes com dados clínicos não sugestivos de Alergia à Proteína do Leite de Vaca IgE mediada, ou seja, que não apresentavam sintomas típicos após a ingestão de leite de vaca ou ausência de manifestações nas seis horas subsequente a ingestão de derivados do leite de vaca. O teste foi negativo em todos. Considerando todos os pacientes em conjunto a positividade do teste de desencadeamento duplo-cego foi de 67%. Manifestações sugestivas de reações positivas ocorreram em quatro pacientes quando receberam o placebo, sendo um do grupo classificado na metodologia como sem Alergia à Proteína do Leite de Vaca IgE mediada. Adrenalina IM foi administrada para cinco pacientes.
Em certos casos o teste de desencadeamento deve ser realizado com o paciente hospitalizado (histórico de reações alérgicas imediatas, reações imprevisíveis, como em pacientes sensibilizados ou que ficaram por muito tempo em dieta de exclusão e dermatite atópica grave).
No Brasil foram realizados alguns estudos(24-27), resumidos na Tabela 3, para avaliar o teste de desencadeamento. A positividade variou segundo o tipo de manifestação clínica predominante (não-IgE ou IgE mediada) e idade dos pacientes. No primeiro estudo publicado, realizado em serviços de gastroenterologia pediátrica, constatou-se desencadeamento positivo em 23,1% dos pacientes, sendo que a casuística se encontrava há longo tempo em dieta de eliminação(24). Outro estudo, realizado em ambulatório de gastropediatria, mostrou maior positividade do teste de desencadeamento(25). Ao que tudo indica, a duração da dieta de eliminação foi menor, assim como a idade dos pacientes com teste de desencadeamento positivo(25). Os demais estudos incluíram pacientes nos quais foi caracterizada sensibilização. Foram realizados em serviços de alergia(26,27). A positividade dos testes variou de 41,3% a 100,0%. No estudo no qual se realizou teste de desencadeamento duplo-cego controlado por placebo, observou-se resultados positivos com o placebo em 5 dos 58 pacientes estudados. Em um dos artigos, de pacientes com alergia imediata mediada pela IgE, foi necessária a administração em pacientes que desenvolveram reações com maior gravidade.
Paradigma da avaliação do paciente com hipótese diagnóstica de alergia digestiva ao leite de vaca
Em nossa experiência com Alergia à Proteína do Leite de Vaca sempre destacamos os três pilares que asseguram a boa assistência:
1. Estabelecimento da hipótese diagnóstica de Alergia à Proteína do Leite de Vaca;
2. Dieta de eliminação das proteínas do leite de vaca, que deve proporcionar expressiva melhora ou plena recuperação clínica;
3. Teste de desencadeamento ou desafio, para comprovação diagnóstica ou do desenvolvimento de tolerância.
Para estabelecer a hipótese diagnóstica é necessário conhecer as formas de apresentação e considerar que muitas delas são inespecíficas. Nesta primeira etapa, quando necessário e indicado, incluem-se exames subsidiários (IgE específica, endocopia, biópsia, entre outros). O termo subsidiário deve ser entendido de acordo com o significado da palavra (dado acessório em apoio do principal, auxiliar), lembrando que o principal é a avaliação clínica.
1. Pregomin Peptiâ (Danone); 2. Alfaréâ (Nestle Nutrition) 3. Enfamil Pregistimil Premiumâ (Mead Johnson); 4. AlergoMedâ (CMW); 5. Aptamil Peptiâ (Danone) contém mistura de prebióticos (FOS + GOS: fruto-oligossacarídeos e galato-oligossacraídeos); 6. Althéra (Nestle Nutriton)â; 7. Neocateâ (Support/Danone); 8. Neocate Advanceâ (Support/Danone); 9. Aminomed (CMW).
O acompanhamento com avaliação clínica da resposta à dieta de eliminação é fundamental para confirmação da hipótese diagnóstica. Quando não se observa resposta clínica favorável, considerar:
1. Duração insuficiente da dieta de eliminação;
2. Prescrição de dieta substitutiva inadequada (por exemplo, leite de cabra ou carneiro). Para lactentes com manifestações gastrointestinais de Alergia à Proteína do Leite de Vaca não deve ser utilizada fórmula com proteína isolada de soja (risco de sensibilização e desenvolvimento de alergia à soja). Assim, no presente momento as opções disponíveis e adequadas são as fórmulas com proteínas extensamente hidrolisadas e as fórmulas de aminoácidos;
3. Hipótese diagnóstica inicial não confirmada, desde que a dieta tenha sido corretamente prescrita e seguida.
Caso o paciente apresente melhora significativa, do ponto de vista clínico, deve-se considerar a realização do teste de desencadeamento. Quanto maior o tempo entre o início da dieta de eliminação e a realização do teste, maior a probabilidade de desenvolvimento espontâneo de tolerância. Se o teste de desencadeamento resultar positivo a dieta de eliminação deve ser mantida por mais 6 a 12 meses. Quando a dieta de eliminação tem duração superior a 6 meses pode-se dizer que o desencadeamento se destina, fundamentalmente, à caracterização do desenvolvimento de tolerância.
Deve ser lembrado que quando o lactente se apresenta assintomático e com crescimento e desenvolvimento adequados existe uma tendência dos médicos responsáveis e da família a não realizarem o teste de desencadeamento diagnóstico, para evitar o risco de recorrência das manifestações clínicas da Alergia à Proteína do Leite de Vaca.
Segundo Weber, Speridião e Morais.
Dieta de exclusão das proteínas do leite de vaca
O princípio básico é realizar dieta substitutiva que não contenha proteínas do leite de vaca e que não apresente risco de reação cruzada (leite de cabra e ovelha) ou de sensibilização, com desenvolvimento de alergia a mais um alimento (por exemplo, fórmula de soja). As fórmulas com proteínas parcialmente hidrolisadas não são eficazes para o tratamento da Alergia à Proteína do Leite de Vaca.
Na Tabela 4 são apresentadas as alternativas para lactentes que necessitam de fórmulas substitutivas.
Com frequência a dieta de eliminação tem início no primeiro semestre de vida. Por ocasião do sexto mês devem ser iniciados os alimentos complementares, evidentemente isentos de proteína do leite de vaca. De acordo com a diretriz da ESPGHAN(8), os alimentos devem ser incluídos na dieta, um de cada vez, iniciando com pequena quantidade. Retardo na introdução de alimentos muito alergênicos (ovo, peixe, trigo) não deve ser preconizado (não reduz risco de desenvolvimento de outras alergias). Se não houver diagnóstico de alergia a esses alimentos, os mesmos devem ser incluídos normalmente, como complemento da dieta de eliminação(8).
Principalmente após os 12 meses de vida, caso seja necessário manter a dieta de exclusão das proteínas do leite de vaca, deve-se ter atenção especial quanto à ingestão de cálcio e de outros nutrientes. Atenção específica por nutricionista pode ser de grande valia(5,28).
De acordo com as DRIs (Dietary Reference Intake - ingestão dietética de referência), do Instituto de Medicina (2010), as necessidades diárias de cálcio são:
1. Com base no conceito de ingestão adequada (AI, adequate intake): 200 mg de 0 a 6 meses e 270 mg de 6 a 12 meses de idade;
2. Com base no conceito da ingestão diária recomendada (RDA, Recommended Dietary Allowance): 700 mg de 1 a 3 anos; lactantes com 14 a 18 anos: 1300 mg; lactantes com mais de 18 anos: 1000 mg.
A não utilização de fórmula substitutiva se associa a maior risco de dieta com quantidade insuficiente de cálcio(5). É frequente a necessidade de prescrição de suplemento de cálcio.
Lembrar que os familiares devem ser instruídos quanto à necessidade de leitura dos rótulos de alimentos utilizados como complemantares(28,29). Na Tabela 5 são apresentados os termos que devem ser pesquisados nos rótulos dos produtos industrializados.
Conclusão
Alergia à Proteína do Leite de Vaca é um problema frequente da assistência à criança. O diagnóstico é fundamentalmente clínico, ou seja, depende de anamnese cuidadosa, que relaciona o aparecimento e desaparecimento das manifestações clínicas segundo as mudanças da dieta. Os exames subsidiários podem ajudar; entretanto, não são suficientemente precisos. A utilização de dieta substitutiva que atenda às necessidades nutricionais é fundamental para que se obtenha reversão do processo. Uma vez conseguido o controle do caso, deve-se programar teste de desencadeamento (para comprovação do diagnóstico de APLV ou caracterizar o desenvolvimento espontâneo de tolerância ao leite de vaca), levando em consideração as particularidades de cada paciente.
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